O olhar da psicanálise sobre as compulsões

Analista fala sobre como a psicanálise pode ser útil no tratamento das compulsões

O psicanalista Daniel Hamer Roizman tem o dom de arrancar risos fáceis de quem está por perto. Por meio do humor, ele consegue fazer aquilo que é tão importante em se tratando de análise no campo das compulsões: a elaboração, a simbolização de uma experiência traumática. Nesta entrevista, Daniel discorre sobre o assunto, o que leva as pessoas a ficarem obcecadas por um objeto (seja ele a comida, o sexo, o cigarro, as drogas, a masturbação…), a importância do falar sobre o sofrimento, entre outras questões que envolvem o tema. Boa degustação!

 Quais são as principais causas das compulsões?

As compulsões, normalmente, estão atreladas a determinadas crises existenciais. O sujeito fica sem possibilidade de elaborar alguma situação, algum trauma e diante dessa impossibilidade de elaboração ela recorre, normalmente, a objetos de gozo, que podem ser comida, drogas, objetos materiais diversos, jogo, sexo, masturbação… Então, as compulsões seriam, em geral, insistências do real da pulsão, do caráter acéfalo da pulsão, ou seja, aquilo que da pulsão não passa por representações.

O que é representação?

São, vamos dizer assim, formas de simbolização daquilo que diz respeito à minha relação comigo mesmo e com os outros. Tudo o que escapa a isso é o que a gente caracteriza como compulsão. A pessoa se vê obcecada por aquele objeto de gozo e ela não sabe exatamente a razão disso. O objeto de gozo em si não tem representações suficientes para que o sujeito possa assimilar a importância disso para ele, ele simplesmente se vê atraído como um ímã porque é uma forma dele preencher um determinado vazio.

Então, em vez de elaborar, por exemplo, a morte de alguém querido, a pessoa começa a beber ou a fumar ou a comer compulsivamente?

É isso mesmo. Todos nós temos uma propensão à nos colarmos ao objeto oral primário de satisfação, que seria, a rigor, o seio, ou o seu substituto. O seio é o primeiro objeto de satisfação que alguém tem na sua vida psíquica ou subjetiva. Ninguém sobrevive sem ser nutrido pelo campo oral. Então, de alguma maneira, o ser humano fica eternamente colado a esse objeto, a esse seio, de modo que algumas pessoas conseguem se desprender mais desse objeto e outras, menos. Ao longo da vida, essa relação com o seio, que é instável, ou seja, a partir de micro lesões simbólicas, a partir de dificuldades subjetivas na relação com o outro, através de certos percalços, o sujeito vai lá e come para afogar as mágoas.

Você pode dar um exemplo que retrate como é possível fazer uma representação, uma elaboração de uma experiência difícil, traumática?

Em uma determinada situação de luto, um garoto de 9 anos passa a comer em excesso. Ao longo das sessões, foi mapeado que a morte da avó repercutiu no campo oral de tal forma que o menino tentou ingerir a avó de forma canibalística por meio da ingestão de comidas variadas. A intervenção foi no sentido de dizer que a avó era o doce que ele tanto queria comer, já que sem se dar conta (inconscientemente) ele disse que a avó era uma doçura de pessoa. Como efeito dessa intervenção, seu tratamento teve novos desdobramentos que redundaram em uma diminuição da ansiedade e na respectiva adesão ao plano alimentar do endocrinologista.

Em outra situação, alguém tem seu casamento encerrado por conta de uma traição e começa a ter relações sexuais compulsivas com diversas pessoas. Isso redunda de uma dificuldade de elaboração da perda e de uma tentativa de inverter o lugar da traída/traído pelo lugar do traidor.

O que caracteriza uma compulsão? Porque tem gente que diz: “Eu sou muito guloso, eu como muito.” Outro diz: “Eu me masturbo quatro vezes por semana.”.

Quando alguém traz uma queixa de que ele está impossibilitado de escolher não consumir aquele objeto. Quando ele se vê colado e refém daquele objeto.

Há diversos tipos de compulsões, como você falou, existe alguma mais comum que você vê nos dias de hoje?

Eu diria que a compulsão por excelência é a compulsão oral porque a comida está em tudo. A gente se alimenta várias vezes por dia e mesmo as pessoas magras, que comem salada e fazem muito exercício, elas também são compulsivas paradoxalmente, porque elas sempre estão preocupadas com o comer em excesso. Então, na verdade, a compulsão não é exclusiva de um obeso. Ela está, inclusive, numa anoréxica. Você pode ter uma anoréxica que está mais adoecida do que um gordinho, por exemplo, porque ela não pode comer praticamente nada.

Além da comida, seria também o álcool, o cigarro, a maconha… Tudo o que vai na boca?

Exatamente. O cigarro e o álcool são os deslocamentos orais mais frequentes quando não se trata propriamente de comida, o que o campo social oferta com mais frequência.

Onde há privação há maior compulsão?

Sim, porque a própria marca da compulsão é a pessoa não conseguir ficar longe do objeto. Mas não é que a gente se angustia porque não tem o objeto, a gente se angustia por conta do retorno do objeto.

Como assim?

Quando a palavra não mata a coisa, o objeto volta contra o sujeito. Ele pode voltar de várias formas, inclusive da forma oral. Quando a palavra se vê em curto circuito o que vem no lugar da palavra é a angústia, que é justamente sinal de que esse objeto retornou.

É o caso, então, de uma pessoa que teve uma perda muito grande e não consegue pensar naquela perda, fazer o luto daquela perda?

Exatamente. Um filho morre, eu não tenho mais acesso a ele, não falo mais com ele, eu faço o que? Eu como um cheese burguer gigante com um balde de batata frita. Na verdade, o processo de luto implica numa herança simbólica, ou seja, é elaborar o que resta, simbolicamente, da relação com o filho e não o cheese burguer que vai trazê-lo de volta, mas o que resta dele enquanto traço subjetivo.

Quais outros problemas que podem levar às compulsões?

Basicamente, perdas no sentido amplo, perdas de referenciais fálicos, que não é perda de um ente querido, necessariamente. Alguém esperava uma promoção no emprego e essa promoção não veio ou foi mandada embora, doenças, envelhecimento, a pessoa vê que tinha uma determinada condição de beleza que ela não tem mais, coisas atreladas ao dinheiro, desilusão amorosa, traições, todos os tipos de feridas humanas que impossibilitam as pessoas de lidar e enfrentar.

Então, as compulsões podem acontecer em qualquer momento das nossas vidas, em qualquer idade?

Perfeito, exatamente, não poupa ninguém porque ela é constitutiva, a compulsão é de todos. O que varia é a forma como cada um lida com isso e a extensão que isso tem, mas a natureza da compulsão, e da compulsão oral, em especial, é universal.

Gostaria de dizer algo mais?

Eu acho que é as pessoas poderem saborear e degustar melhor a vida a partir das satisfações parciais que a vida oferece, que as pessoas possam produzir na vida e com a vida.

O que seriam as satisfações parciais?

Parcial é toda satisfação que não é total. Como o ser humano é um ser para a morte nada é absoluto. A compra de uma casa, a publicação de um livro, a compra de um carro, um casamento, o nascimento de um filho, … essas coisas podem trazer satisfação, realização, até um bem-estar, mas a vida continua. Não há garantias. É nesse sentido que eu quero dizer, então, a questão seria poder saborear o desejo, a castração, a falta, sem tomar isso como uma condição de bloqueio ou de angústia do qual o sujeito se vê refém. Para isso serve a Psicanálise.

Não dá para ter tudo, não é mesmo?

Não dá para ter tudo. Não há uma garantia de gozo. Prazer e dor são inerentes à vida.

Daniel Hamer Roizman é psicólogo, psicanalista e mestre em Psicologia Social pela Pontifíca Universidade Católica – SP. Tem experiência em consultório e hospitais trabalhando também como docente. Em 2017 publicou o livro “A Obesidade não toda: ou quando a gordura fala” (ed. Escuta), que discorre as possíveis intervenções do analista frente aos traumas não simbolizados, a cultura das dietas e cirurgias bariátricas e muito mais.

CONTATO: danielhamer@me.com

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