Deixe o passado passar

Psicóloga e psicanalista explica como lidar com as experiências do passado que ainda ressoam no presente, a importância de aprender a entrar em contato com a dor para fazer lutos e poder, assim, ter a libido novamente liberada para viver novas experiências

Com a delicadeza que lhe é inerente, a psicóloga e psicanalista Elisa Maria Ulhôa Cintra fala sobre esse tema de fundamental importância para não carregarmos excessos do passado. Elisa pontua os ganhos de soltar o que passou, o que nos impede de conseguir essa proeza, qual é o passo a passo do luto (seja ele da morte de uma pessoa querida, do fim de um relacionamento, de um trabalho, …), por que a sociedade atual atrapalha esse processo, a importância do perdão para curar traumas e como dar uma nova chance para a vida, para novas relações e todas as possibilidades que o viver proporciona.

Do ponto de vista psíquico, por que é importante deixar o passado passar?

Deixar passar o passado é uma coisa muito importante. Quando a gente se apega ao passado fortemente, não aceita uma separação, não aceita passar de uma etapa para a outra, por exemplo, a gente entra numa coisa que tem mais a ver com melancolia e com depressão e que são formas de adoecimento. Eu acho até que o psiquismo existe para fazer lutos.

Como assim?

A gente só deixa passar o passado se a gente consegue fazer algum luto. E o que é fazer um luto? Desde que nascemos, temos que deixar alguma coisa. O desmame é um primeiro luto. Na hora que você para de usar fralda, é um segundo luto. Algo se perde algo se ganha, mas você tem que deixar aquele status quo que você tinha e tem que passar para uma outra etapa. O próprio fato de que a gente é temporal e que está tudo em movimento exige que a gente deixe passar o passado.

O que nos impede de deixar o passado passar?

Algumas coisas. Uma delas é uma recusa a entrar no fluxo temporal e no tempo histórico. Outra é quando a gente idealiza muito o passado ou uma pessoa ou uma etapa da vida, aí parece que não conseguimos abrir mão de forma alguma daquela história. Você acha que a pessoa que você perdeu é tudo, é linda, maravilhosa, talentosa, é tudo de bom e que você não vai encontrar ninguém aos pés daquela criatura. É dar um excessivo valor a algo e que frente a esse excessivo o valor, o real, o atual parece lixo, nada. É um estado de ilusão.

Outro fator que nos impede é ter muita raiva, raiva da perda, do outro, de si, da rejeição e também uma forma de auto depreciação, do tipo: “Naquela realidade, aos meus olhos, eu tinha valor. Agora, sem aquela realidade, eu não sou nada, eu não presto, eu não tenho valor”. É uma depreciação de si mesmo. Em geral, a depreciação de si está escondendo uma raiva. A pessoa fica falando mal dela mesma, mas, no fundo, ela está falando mal da pessoa que a abandonou, que a deixou e todos esses afetos têm que ser transformados. Toda a nossa energia fica presa naquela história, naquela dor ou naquela raiva e você não consegue colocar investimento em mais ninguém. A pessoa não quer saber de aceitar a perda. Enquanto não aceitar a perda, não tem desenvolvimento possível.

E como isso pode ser resolvido?

O luto é um processo onde você chora sentidamente uma perda, precisa dar uma paradinha já que não temos vontade de fazer muitas coisas, ficamos com a energia vital diminuída. Aos poucos, você vai recontando aquela história para você mesma ou para os amigos ou na terapia. Uma análise, uma terapia é o lugar ideal para ter uma narrativa, como: “como foi que aconteceu essa ruptura, como essa relação começou,…”. Você vai como que refazendo um caminho.

Freud (Sigmund Freud, 1856-1939, o criador da Psicanálise) dizia que quando você perde alguém, nos momentos imediatos depois da perda, a presença daquela pessoa fica até mais intensa do que quando você estava no dia a dia se relacionando com ela. Freud estava muito impressionado com a chegada da luz elétrica nas cidades e ele faz uma comparação: quando você perde alguém, é como se tivesse um cartaz iluminado piscando. A presença da pessoa que você perdeu fica piscando dentro de você por um tempo, de forma mais intensa. Aí você pode chorar e aquele elo de ligação pode ser desinvestido de energia deixando a libido liberada dentro de você para começar outras coisas. Mas isso é um processo, o processo do luto.

Um filme que trabalha isso de forma muito legal é o Divertidamente. A menininha não queria aceitar ter saído do norte dos Estados Unidos e chegar em São Francisco. Tem um momento em que eles fazem uma alegoria de como seria a vida mental dela e está tudo paralisado, tudo caindo e ela não queria sentir a tristeza. No filme, a virada acontece quando ela perde o preconceito com relação à dor, abraça a dor e pela dor ela consegue achar um caminho de saída do luto. Quando temos a coragem de sentir um pouquinho a dor, a raiva dá uma relaxada. Porque na raiva a pessoa fica numa posição reativa.

A pessoa fica falando mal, mal e mal e não sai do lugar, fica numa repetição. Quando você sente a dor, parece que você vai mais fundo e por ali você acha uma saída. Junto com a dor vem um sentimento mais profundo da perda, mas também, na hora que você sente a dor, você se reconecta com o seu lugar de onde vinha o amor. E esse contato com o amor anterior que você tinha antes de ter virado raiva, também faz você sair porque aí você pega aquele seu amor e dirige para outra situação, porque você perdeu a outra pessoa, mas o amor é seu.

Então, o caminho desse luto é contar, recontar, sentir a dor e, depois, naturalmente, isso vai embora?

Sim, você vai meio que repassando todas as etapas daquela história e com isso você vai dando novos significados para aquilo. A narração vai te reposicionando. No fundo, você tem que assumir outra posição frente àquela relação antiga, você tem que aceitar uma perda.

O afeto é sempre mais lento que o pensamento, pelo pensamento a gente quer logo se livrar da dor, mas não tem luto verdadeiro se você não puder mergulhar na dor e depois sair dela. Agora é muito difícil mergulhar sozinho, fazer isso na companhia de quem você gosta, seja um terapeuta, seja um amigo, é muito melhor.

É por isso que a gente fala que o holding, ou seja, a sustentação, é a coisa mais importante na hora que você tem um luto e precisa deixar o passado. Você precisa de suporte afetivo, principalmente, porque a perda é um abandono afetivo, de alguma forma você se sente abandonado, rejeitado e aí precisa de afeto, de companhia.

Você falou que a gente precisa sentir. A sociedade em que vivemos hoje nos ajuda nisso? 

Não. A sociedade capitalista estimula o que a gente chama de defesa maníaca, que é assim: “come, come, come”, “compra, compra, compra”, “bebe, bebe, bebe”, “transa, transa, transa”, … É uma voz interna que diz: “fique feliz”, “vá para o Facebook, mostra as coisas maravilhosas que você fez e faz”, … É um elogio a estar sempre feliz, fazendo, acontecendo, consumindo, dominando o pedaço. Não tem nenhuma tristeza, nenhum momento de recolhimento.

De fato, a mídia e o ritmo de vida exigem que a gente resolva as nossas perdas assim, de um dia para o outro, magicamente. E não é que a gente não precise, de vez em quando, ser um pouquinho maníaco. Você tem que trabalhar, você precisa usar um pouquinho da defesa maníaca em prol da vida, para sair da cama no dia seguinte e fazer alguma coisa que você precisa fazer, tudo bem. O problema é que a gente abusa. E a defesa maníaca é como se fosse uma droga, o próprio álcool e outras drogas têm esse poder de te dar uma euforia ilusória para te tirar do sentimento de dor, de arrependimento, de culpa, tudo que faz parte de um estado mais retrospectivo, mais introspectivo de analisar o que aconteceu. A cura só vem se você atravessa e consegue ter contato com a dor, com a raiva, falar da sua raiva… E há muitas formas terapêuticas, como os florais, a homeopatia, a fitoterapia que foram criadas para nos ajudar, além da própria terapia pela palavra.

Marcas profundas deixadas por experiências muito dolorosas, também é possível ressignificá-las?

Sim, até certo ponto sim. Nunca a gente pode afirmar de forma absoluta que os traumas que a gente viveu serão todos ressignificados. Ninguém tem controle sobre isso, mas a quê a gente pode se propor? A gente pode se propor a ir ressignificando, sem saber se chegaremos a termo quanto às marcas muito profundas que aconteceram, principalmente numa época em que você não tinha nenhuma compreensão do que estava acontecendo. Essas são as mais difíceis de ressignificar. Porque o que ajuda a ressignificar é uma compreensão maior do que aconteceu, quais eram os fatores envolvidos. Por exemplo, às vezes é muito difícil a gente perdoar abandono afetivo de pai e mãe porque a gente tem uma ideia de que pai e mãe existem para amarem de forma incondicional os filhos.

Tem um filme chamado A Cabana que mostra um rapaz que tinha apanhado do pai e tem um ponto do filme em que ele tem uma visão do pai, quando o pai dele era menino, as surras que o pai tinha levado do pai dele. Aí ele entende que aquele homem, quando criança, tinha apanhado loucamente e quando virou pai repetiu com ele a realidade que tinha sido dele quando criança. E essa compreensão o liberou de uma boa parte da raiva. Em geral, a cura de um trauma sempre vai passar pelo perdão. Perdoar o que o outro fez, o que ele deixou de fazer, o que ele não sabia fazer, o que ele não pôde fazer. E é a coisa mais difícil para a gente, né?

O que a gente ganha quando deixa o passado passar?

Ganha muitas coisas. Por exemplo, quando você é criança e tem uma relação corpo a corpo muito simbiótica com a sua mãe, se você não aceitar deixar passar esse passado, você nem chega a ter acesso à palavra, não vai descobrir que pode andar sozinho, não vai poder entrar na escola, fazer amigos, não vai poder se tornar adulto. Hoje em dia, muitas pessoas, com 40, 50 anos, estão lá grudadas no pai e na mãe. Essas são as perdas. Elas não ganharam autonomia. Se tivessem feito lutos lá atrás, desde pequenos, para tirar um pouco dessa idealização da proximidade dos pais ganhariam o acesso a construir a própria vida, criar um lugar para si no mundo.  Pois isso a resolução do Complexo de Édipo é você poder descobrir o prazer de viver fora da família, trabalhar, namorar, se casar, ter filhos, ter autonomia. Caso contrário, toda a sua vida fica paralisada. Porque é isso o que você ganha,

a cada luto você perde algo, mas você ganha algo. E é esse ganho que a gente precisa contabilizar para poder suportar a perda. Mesmo quando a gente amou muito alguém que se separou da gente, é duro, mas você pode descobrir a si mesmo e aos outros de novas formas. Daí, só vivendo e pagando o preço para ver. É preciso dar uma nova chance.

Quais são os sinais de que o passado está pedindo para ser olhado?

São vários. Por exemplo, uma pessoa que está muito anestesiada, não consegue rir de nada, não consegue achar graça em nada, não consegue se ligar a ninguém, não sente nem amor, nem raiva, nem ódio, nem nada, está anestesiada. Isso é um sinal de que tem coisa congelada que não está sendo percebida. Ou uma pessoa muito impulsiva, muito reativa, por exemplo, uma situação hipotética como uma pessoa que passou por uma perda de casamento há muitos anos e até hoje não se conforma. Essa pessoa pode ter uma reação explosiva quando vê um casal porque ela se sente fora de qualquer união. Ou quando entra num táxi, um carro vem e dá uma fechada, ela começa a xingar, com ódio. Ou seja, a pessoa reage de forma explosiva a qualquer pequena frustração.

Então, você vê isso ou pelo excesso de reação explosiva ou por uma certa apatia, não quer sair de casa, tudo é chato, não quer sair da cama, nada interessa. A libido vai embora.

E uma coisa importante: para uma criança, se ela consegue brincar, isso é sinal de saúde, se ela não consegue brincar, isso é sinal de que tem coisas do passado que precisam ser vistas. É um critério de saúde.

Gostaria de dizer algo mais?

Só mais uma coisa. Freud indicava alguns critérios de saúde, ele dizia: se você é capaz de amar, de trabalhar, de se interessar por alguma coisa, rir, chorar e fazer lutos, você está na saúde. Quando você não consegue direito nada disso, é sinal que está precisando trabalhar alguma coisa do passado que ficou mal elaborada.

Elisa Maria Uchôa Cintra é psicóloga e psicanalista, professora da faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, da Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Autora de Melanie Klein: Estilo e Pensamento (ed. Escuta) e A Folha Explica Melanie Klein (em coautoria com Luís Claudio Mendonça Figueiredo; ed. Publifolha). E também de Para além da contratransferência: o analista implicado (ed. Zagodoni ) e Por que Klein? (em coautoria com Marina Ribeiro; ed. Zagodoni) (org) e autora de Melanie Klein na Psicanálise Contemporânea (ed. Zagodoni).

Contato:elcintra01@gmail.com

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